30 de julho de 2004

frágil é a mortalha
em que se oculta o silêncio

e uma trupe sussurrante
dilacera
o negro útero da noite -

o frémito das plantas
nos dedos da brisa

a febre ruminante
dos insectos

todos os inquietos rumores
da madeira e da pedra

- alheios à ternura
abandonam-se os corpos
ao estertor dos sonhos

23 de julho de 2004

as tuas mãos

 a Carlos Paredes

as tuas mãos
são como asas
voando
no azul luminoso
do entardecer

as tuas mãos
são como água
correndo
cristalina e fria
pelas encostas

as tuas mãos
são como brisa
dançando
entre as brancas dunas
da beira mar

as tuas mãos
são como ondas
embalando
a alma impura
deste povo marinheiro

que chora
na tua guitarra

porque partiram já
as tuas mãos
deixando
o travo amargo-doce
da saudade

21 de julho de 2004

ó flor sem segredo
à mercê
de quem passa
 
vermelhos
são teus lábios
atrás da vidraça
 
borbulhando
no cristal
de um aquário triste
 
como os vermelhos
peixes de Matisse

20 de julho de 2004

O eco dos passos


Foto: Carlos Fernandes 
 
Na penumbra da charola de Tomar, o eco dos passos acorda o eco de outros passos mais antigos, mais solenes; o som das vozes evoca o murmúrio de outras vozes mais profundas, mais austeras: os passos e as vozes dos monges cavaleiros que empenharam tudo na busca dos grandes segredos da fé. E por isso se perderam, aniquilados pela cupidez dos poderosos. Do longínquo Oriente nos legaram os símbolos, as formas e as cores, plasmados numa arquitectura de grande devoção. Aqui, o seu testemunho permanece vivo e inspirador.
 
Há vozes e passos
vibrando na luz coada
da capela mor.
 
São os ecos dos Templários
em busca de Santo Graal.

19 de julho de 2004

Baile de Verão -
ao ritmo da minha rede
valsam as estrelas.

18 de julho de 2004

há uma fonte
que brota
das tuas mãos enlaçadas

e viaja nos teus olhos
o vai e vem das marés

semeias colhes e teces
o riso das desfolhadas

com a paciência das algas
com a mesma limpidez

hora a hora
segundo a segundo

fazes do peito a casa
fazes da casa o mundo


17 de julho de 2004

onde está a ilha
a secreta ilha
 
a ilha que eu sonhei
no mapa do teu olhar
 
fui em busca dela
e perdi-me no mar

na candura obstinada do teu corpo surreal:
o delírio das horas 
 
no sorriso das estátuas rasgado a cinzel:
a pele coriácea das horas 
 
na urze benzida pelo orvalho de Abril:
o pingar das horas
 
na insónia da ave à espera do sol:
a interrogação das horas
 
na voz amotinada rasgando o azul:
o anseio das horas

16 de julho de 2004

bates à porta

bates à porta. afagas as paredes com a língua do silêncio.
cravas as unhas na pele tenra da noite.
com mil anos de espera no sobrado dos olhos.
e a sede germinando oculta num vaso carmim.
 
bates à porta. para lá da entrada o ressoar das lajes.
o frémito da madeira. o gemido da cal.
o bocejo opaco da água. a claridade de um voo sem fim.
 
bates à porta. imitas o chilreio brando das aves pequenas.
as mãos que suplicam a submissão dos gonzos.
e adubas as asas com um braçado de lírios. antecipando o festim.
 
bates à porta. acendes a nudez da aurora com o teu corpo intacto.
sorris de mansinho. e como uma ladra profanas a porta fechada de mim.

15 de julho de 2004

com as páginas dos olhos
nos revisitamos
dentro dos livros

como num filme
em vertiginosa rotação

até que a luz do sol
nos devolva
à cegueira dos dias

14 de julho de 2004

a polpa da tua boca
na polpa da minha boca

numa ânsia louca
o beijo

da fruta
o sumo desejo

13 de julho de 2004

o ruído dos teus passos
alvoroça os cães
que gastam o dia
dormitando pelos quintais

é tão ténue
o ruído dos teus passos

mas os cães bebem no ar
o mais pequeno rumor
e ladram
para sacudir o letargo
que lhes tolhe o corpo

não é a ti que ladram
mas à certeza da morte

12 de julho de 2004

o poeta pastoreia
o insubmisso rebanho
das palavras
pela aridez da página

sopra-lhe nos cabelos
o vento agreste da montanha

fazendo vibrar
nas suas mãos desamparadas
uma oculta melodia

11 de julho de 2004

ó praias do meu país
que sonho vão lamentais?

que queixas são essas que
todo o dia suspirais?

o sol rompe o horizonte
doirando na maré cheia

e é do rude génio do mar
que nasce a mais fina areia

9 de julho de 2004

no palco

trémulo
com os olhos postos no abismo
o actor entrega-se
à vertigem do palco

e no âmago
da sua própria luz
de si mesmo se despoja
e se oferece
à volúpia do público

com quem reparte
o pão e o vinho
do seu corpo e da sua voz
na liturgia da cena

na comunhão do gesto
na comunhão da palavra

8 de julho de 2004

oculta na ramagem
do pinheiro manso

insiste a rola
em sua monótona
ladainha

será uma prece
ou um
queixume de amor?

7 de julho de 2004

uma vida

um rasto breve
de passos

o leve suspiro
da brisa

o brilho fugaz da lua
na areia tépida

logo diluídos
nos rumores da maré

4 de julho de 2004

à desfilada
como corcéis
as ondas

fugindo
dos galanteios
do vento

em espuma
se desvanecem
na praia

(sorrindo
deste namoro
o sol)

e ao fim da tarde
quem os acolhe
num longo abraço?

o mar

3 de julho de 2004

Entardecer


(a Sophia de Mello Breyner Andresen)

pairando nos reflexos do poente
a face cristalina da poesia

abraça o horizonte num lamento
perdida numa estranha nostalgia

e um eco singular rasga a falésia
vibrando em dolente melodia

é o verde dos pinhais a voz do mar
chamando mansamente por Sophia